
28 de dezembro de 2006
BAKHTINE E A CULTURA POPULAR

25 de dezembro de 2006
SOBRE OS SISTEMAS POLÍTICOS

22 de dezembro de 2006
JUNTO AO PRESÉPIO

O acto de nascer que Deus fizera
Para dar vida à morte dos humanos
Quis esse outro Deus (que o mesmo era)
Recriar como Verdade de mil anos.
No princípio sem fim da Eternidade
Um vagido soou subtil e puro,
Vencendo para sempre a soledade
E os terrores e medos do futuro.
Em Ti, Criança, na Tua mão direita,
No anseio de alcançar a Paz perfeita
Fez Antero repousar seu coração.
Estrela de Belém e dos pastores
Lava da alma humana as suas dores
Renascendo mil vezes desse chão.
Para dar vida à morte dos humanos
Quis esse outro Deus (que o mesmo era)
Recriar como Verdade de mil anos.
No princípio sem fim da Eternidade
Um vagido soou subtil e puro,
Vencendo para sempre a soledade
E os terrores e medos do futuro.
Em Ti, Criança, na Tua mão direita,
No anseio de alcançar a Paz perfeita
Fez Antero repousar seu coração.
Estrela de Belém e dos pastores
Lava da alma humana as suas dores
Renascendo mil vezes desse chão.
21 de dezembro de 2006
BERGSON E O RISO

18 de dezembro de 2006
A REPÚBLICA

17 de dezembro de 2006
SABES ...

Sabes, eu desejava ter-te
Na contraluz do Tempo insaciável,
Na promessa translúcida
Do que poderia ter sido
Sem me adivinhar.
Sabes, pesa-me agora a letal mortalha
De todas as coisas presentes e fanadas,
O sudário do que perdeu novidade,
Este escapulário das penitências convenientes.
Sabes, o Homem é o burel das oportunidades perdidas
Jazentes nas estilhas de espelhos sem cristal.
Rumamos à velhice cabisbaixos
Deixando por fazer loucas façanhas
Deixando por cumprir Pátrias sonhadas
Deixando por compor roucas baladas
Que um dia em nós vibraram surdamente.
Sabes, todos quisemos partir um dia à descoberta
Do Santo Graal, do Velo de Oiro, do Preste João
E todos acabámos por ficar
Na berma do nosso condoído desencanto.
Sabes, por uma destas tardes sonolentas
Irei fazer-te (de surpresa) uma visita.
Quem me diz que não te possa encontrar
A cuidar das flores do teu canteiro?
Sabes, talvez que o Santo Graal,
O Velo de Ouro e o Preste João
Estejam por aí à nossa espera
No outro lado desse espelho antigo
Mistério e mito desse templo amigo
A demandar uma oração sincera.
15 de dezembro de 2006
A ESPADA DE GOMES FREIRE

Um dos processos de que se servia Napoleão para reforçar o seu poder de combate consistia na requisição de militares competentes e na sua forçada inclusão nas fileiras do exército francês. Gomes Freire não escapou a tal sorte, tendo partilhado, forçadamente, a sorte da falida aventura napoleónica. As três invasões a que Portugal se viu sujeito tiveram efeitos deploráveis, desorganizando completamente as nossas actividades económicas. Os governantes portugueses, com a concordância da Corte, agora no Rio de Janeiro, decidiram instar a Grã-Bretanha a proporcionar ajuda militar a Portugal. Os contingentes britânicos que entre nós passaram a combater vieram acompanhados de chefes distintos. Estiveram neste caso as personalidades do Conde de Wellington e de William Carr Beresford. Vencidos os franceses, foi este último que ficou à frente da Administração portuguesa, em nome da Corte do Rio de Janeiro.
Gomes Freire de Andrade regressou à sua Pátria. Vinha cansado de pelejar. Declarou o propósito de fazer repousar a espada e de encarar o deslizamento para uma velhice bonançosa. Era, contudo, uma figura suspeita a Beresford. A principal causa desta suspeição radicava no facto de ser Gomes Freire o Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa. Na ordem estritamente política, a Maçonaria aprofundava os ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade que haviam sido a principal referência ideológica da Grande Revolução francesa de 1789. Tais valores não poderiam deixar de ser execrados pelo representante de um Poder absolutista, ancorado nos privilégios aristocráticos e nos dogmatismos de casta.
Certo dia, num botequim de Lisboa, um militar português, semi-etilizado, falou na irritação que lavrava entre alguns dos seus camaradas. Era necessário, dizia, expulsar Beresford e a sua gente, fazer regressar do Brasil os que aí permaneciam, indiferentes à sorte da Pátria, e encaminhar o país para um futuro mais venturoso. E acrescentou que havia já entendimentos com Gomes Freire, que se dispunha a chefiar este suposto pronunciamento. Mas o poder de Beresford – como todo o poder autoritário e arbitrário – baseava-se na vigilância e na delação. Alguém ouviu. E esse alguém não se coibiu de informar Beresford da hipotética conspiração em marcha.
Estaria Gomes Freire ao corrente do que se tramava? É possível que sim. Mas seria ele um activo e empenhado conspirador? É duvidoso. Parece que ele apenas se dispunha a seguir atentamente a marcha dos acontecimentos e a retirar a espada do armário, se e quando a Pátria disso necessitasse.
Beresford agiu no imediato. Mandou prender todos aqueles que se encontravam incursos na suspeita de conluio e não poupou Gomes Freire à mesma punição. O general português não se iludiu sobre a sorte que o esperava. Dizia-se que Beresford se dispunha a desencadear sobre os prisioneiros uma punição exemplar. Aguardava-os a forca. Gomes Freire sentiu-se injuriado e não quis admitir a hipótese de sofrer a mesma punição que, naquele tempo, era aplicada aos grandes e contumazes criminosos. Não temia a morte, mas desejava-a digna de si, ou seja, aspirava a um fim digno do seu prestigioso passado. Assim, só se imaginava fardado, ostentando a sua gloriosa espada, em frente de um pelotão de fuzilamento que descarregaria as armas à sua voz de comando e de disparo. Foi isso que reclamou de Beresford e da Corte do Brasil. Mas um Poder absoluto, quando acossado, só consegue agir com a crueza das bestas. Gomes Freire de Andrade acabaria enforcado no forte de S. Julião da Barra. E a sua espada? Essa adormeceu no tempo, e despertou um dia, em plena ditadura salazarista, na escrita de Luís de Sttau Monteiro. É que … Felizmente há luar. E se os meus leitores não conseguirem decifrar plenamente esta alusão, queiram dar-se ao trabalho (e ao prazer) de se fazerem leitores de Sttau Monteiro. A espada de Gomes Freire ainda cintila. É que os grandes Ideias, as grandes Figuras, as grandes Memórias nunca morrem! Haverá sempre luar no coração generoso dos que sabem amar Portugal. Vamos ler o Felizmente há luar?
13 de dezembro de 2006
UMA EUROPA DOENTE

Este espaço territorial fluido – porque nem sempre bem delimitado – a que damos o nome de Continente Europeu, foi exercitando o seu trabalho de sobrevivência, ao longo das idades, adicionando significados complementares ao seu acto estrito de persistir e de viver. Nas civilizações clássicas, grega e romana, a construção das cidades-estado ou do espaço imperial não susteve o labor da afirmação dos valores. E foi precisamente por isso, por essa pertinácia em acrescentar uma identidade de pensamento às coligações defensivas das anfictionias ou aos projectos ofensivos da romanização extra-territorial , foi basicamente por isso que hoje o património clássico é reconhecido como um fundamento identitário da tradição europeia. No caso grego, o aditamento a que nos referimos chamou-se Filosofia ; no caso romano chamou-se Direito. Este empenho de buscar um sentido interior e exterior às imposições biológicas e às servidões da nutrição, de superar o drama imediato do existir através de valorações superadoras, é ainda mais visível no espaço claustrado de uma Europa medieval, dobrada sobre a adoração da Divindade católica, para através dela proclamar a sua diferença essencial perante as hordas selváticas da barbárie. A primeira globalização renascentista, concretizada através da aventura dos descobrimentos marítimos, também não se exauriu totalmente no somatório da pura ganância mercantil. Houve em tudo isto uma singular percepção de aventura, de sonho, de transbordamento de limites e de espanto utopista. Podemos imaginar, como divisa simbólica, que Camões não permitiu que o naufrágio de um barco, talvez carregado de especiarias, tivesse metido a pique o livro d’Os Lusíadas, ou seja, a melhor e mais valiosa parte da carga. E se o alvorecer do industrialismo europeu fez nascer os gananciosos financistas, os cúpidos negreiros e os implacáveis capatazes fabris, não é menos verdadeiro que também fez medrar a mensagem da emancipação romântica, do protesto socialista e, mais adiante, da recriação do simbolismo e do surrealismo. Olhamos para trás e o que vemos é isto. E continua a ser isto que nos torna tão exíguo, tão desolado e tão pardacento o presente que habitamos.É como se a Europa tivesse perdido, passo a passo, todos os suprimentos da alma que um dia fora sua. É como se, cansada de si, a Europa tivesse ido pedir a um qualquer tio rico o pagamento ou a espórtula de um novo bilhete de identidade.É como se, num suicidário lance niilista, este Continente tivesse perdido todas as referências que outrora a tornaram justa, bela e verdadeiramente livre. A Europa entrou em dispepsia pragmática, em sonambulismo economicista, em amnésia teórica. A questão está toda em saber se lhe será diagnosticada a doença do sono, que pode ser curada, ou a doença de Alzheimer, que é inelutável.
12 de dezembro de 2006
PARTIR
Parto agora (como só sabe partir quem
Não chegou ao destino demandado).
Parto agora à procura de mim.
Ah, vida minha, bordado carmesim
Que mãos ignotas pontearam deste Fado!
Perdido como Ulisses na aresta das vagas,
Qual Moisés sem Sinai e sem tábuas da Lei
Assim vagante eu fui, vagando em mim
Como se inútil fosse quanto fiz e dei …
Há quem parta com outro norte, outra maré,
Há quem desfralde pendão duma outra Fé,
Há quem se banhe noutras quentes águas,
Sem o limo da Dor e o moliço das mágoas.
Partir, partir agora e já (como quem finge
Chegadas triunfais a praias de nativos,
Simulando vivências de tempos redivivos);
Partir sem o remorso do que ficou p’ra trás
(Gentes e portas, saudades e torrentes,
Odores de sal e mel em potes bem recentes,
Arvoredos imponentes de folha bem vivaz).
Partir sem o costumado receio de quem sai,
Sem o celebrado alvoroço de quem vem
E sem o sentimento de quem julga ter
Uma qualquer missão ou um qualquer Dever.
Parto, sonâmbulo e vago, porque sim,
Sem contar encontrar nas raízes de mim
Móbil e jeito, texto e pretexto.
Eu sou, sem mais razões, tal qual assim.
Não chegou ao destino demandado).
Parto agora à procura de mim.
Ah, vida minha, bordado carmesim
Que mãos ignotas pontearam deste Fado!
Perdido como Ulisses na aresta das vagas,
Qual Moisés sem Sinai e sem tábuas da Lei
Assim vagante eu fui, vagando em mim
Como se inútil fosse quanto fiz e dei …
Há quem parta com outro norte, outra maré,
Há quem desfralde pendão duma outra Fé,
Há quem se banhe noutras quentes águas,
Sem o limo da Dor e o moliço das mágoas.
Partir, partir agora e já (como quem finge
Chegadas triunfais a praias de nativos,
Simulando vivências de tempos redivivos);
Partir sem o remorso do que ficou p’ra trás
(Gentes e portas, saudades e torrentes,
Odores de sal e mel em potes bem recentes,
Arvoredos imponentes de folha bem vivaz).
Partir sem o costumado receio de quem sai,
Sem o celebrado alvoroço de quem vem
E sem o sentimento de quem julga ter
Uma qualquer missão ou um qualquer Dever.
Parto, sonâmbulo e vago, porque sim,
Sem contar encontrar nas raízes de mim
Móbil e jeito, texto e pretexto.
Eu sou, sem mais razões, tal qual assim.
11 de dezembro de 2006
A PROPÓSITO DA MORTE DE UM DITADOR
Augusto Pinochet despediu-se deste mundo e não deixou saudades. Mais do que execrar o ditador, haverá que apontar o húmus e os nutrientes de que se alimentam os tiranos, onde quer que medrem, e quaisquer que possam ser as justificações que lhes servem de pretexto.
Há duas maneiras de encarar o nosso semelhante. Uma delas é a mais primitiva e boçal: o nosso semelhante é o nosso concorrente, o nosso inimigo, o terceiro que nos disputa o espaço vital, nos rouba os nutrientes e nos arrebata as oportunidades de auto-afirmação. Como é evidente, a ser esta a lógica, a espécie humana perde toda a consistência de harmonização social. O acto de viver desprende-se dos vínculos da convivência e do calor da simpatia que lhe confere humanidade. O mando deixa de ser um comando, um mando com, uma aceitação mútua de regras de orientação. Passa a ser, tão só, um exercício desvairado de domínio, através do qual o ditador perde todo o sentido da sua proporção e da sua relatividade. Será então tomado por uma espécie de fúria megalómana, semelhante à que assolou Pinochet quando saíram dos seus lábios estas deploráveis palavras: “No Chile, nem uma folha oscila sem o meu conhecimento”. Este desvario pode ocorrer em qualquer momento, neste ou naquele país, como subproduto de quaisquer regimes, por brilhantes que sejam as camadas de verniz com que se adorna a chamada Civilização. Mas há um outro modo de interpretar o acto social de existência. Consiste este em interiorizar a verdade da nossa condição. Somos fracos, fugazes e sujeitos a todas as usuras. A usura do Tempo, sendo a mais implacável, porque contínua e imparável, não é a única com que nos medimos. Usurárias são também as doenças, usurárias são as dores e os castigos com que a Natureza inopinadamente nos pune. Inermes perante todos os Deuses, impotentes perante o próprio fio da vida, é sobre a ara da mútua relatividade que deveremos construir o edifício da vida colectiva. É sempre o outro, o terceiro, o semelhante, que complementa e realiza tudo aquilo em que somos insuficientes. Por isso, o outro é a parte necessária da nossa individual realização. Pinochet vivia, como adiado cadáver, ao arrepio de tudo isto. E no entanto também ele apresentava estigmas tão notórios de precaridade como os das folhas amarelecidas que se desprendiam das árvores sem lhe pedirem autorização. O ditador desconheceu ou nunca quis saber que qualquer acto de sobrevivência só subsiste através da mutualidade dos serviços e da conjunção dos afectos. Pinochet, que julgou poder sentenciar em vida, como um Deus, sobre a sorte dos chilenos, morreu pior do que qualquer outro seu concidadão, pois se finou como um patético homenzinho, criminalizado por assassinatos e latrocínios. E as árvores chilenas continuarão a oscilar, como sempre, ao sopro de todas as aragens, sem sequer se darem conta de que houve um dia um fétido Pinochet que as quis sujeitar.
Há duas maneiras de encarar o nosso semelhante. Uma delas é a mais primitiva e boçal: o nosso semelhante é o nosso concorrente, o nosso inimigo, o terceiro que nos disputa o espaço vital, nos rouba os nutrientes e nos arrebata as oportunidades de auto-afirmação. Como é evidente, a ser esta a lógica, a espécie humana perde toda a consistência de harmonização social. O acto de viver desprende-se dos vínculos da convivência e do calor da simpatia que lhe confere humanidade. O mando deixa de ser um comando, um mando com, uma aceitação mútua de regras de orientação. Passa a ser, tão só, um exercício desvairado de domínio, através do qual o ditador perde todo o sentido da sua proporção e da sua relatividade. Será então tomado por uma espécie de fúria megalómana, semelhante à que assolou Pinochet quando saíram dos seus lábios estas deploráveis palavras: “No Chile, nem uma folha oscila sem o meu conhecimento”. Este desvario pode ocorrer em qualquer momento, neste ou naquele país, como subproduto de quaisquer regimes, por brilhantes que sejam as camadas de verniz com que se adorna a chamada Civilização. Mas há um outro modo de interpretar o acto social de existência. Consiste este em interiorizar a verdade da nossa condição. Somos fracos, fugazes e sujeitos a todas as usuras. A usura do Tempo, sendo a mais implacável, porque contínua e imparável, não é a única com que nos medimos. Usurárias são também as doenças, usurárias são as dores e os castigos com que a Natureza inopinadamente nos pune. Inermes perante todos os Deuses, impotentes perante o próprio fio da vida, é sobre a ara da mútua relatividade que deveremos construir o edifício da vida colectiva. É sempre o outro, o terceiro, o semelhante, que complementa e realiza tudo aquilo em que somos insuficientes. Por isso, o outro é a parte necessária da nossa individual realização. Pinochet vivia, como adiado cadáver, ao arrepio de tudo isto. E no entanto também ele apresentava estigmas tão notórios de precaridade como os das folhas amarelecidas que se desprendiam das árvores sem lhe pedirem autorização. O ditador desconheceu ou nunca quis saber que qualquer acto de sobrevivência só subsiste através da mutualidade dos serviços e da conjunção dos afectos. Pinochet, que julgou poder sentenciar em vida, como um Deus, sobre a sorte dos chilenos, morreu pior do que qualquer outro seu concidadão, pois se finou como um patético homenzinho, criminalizado por assassinatos e latrocínios. E as árvores chilenas continuarão a oscilar, como sempre, ao sopro de todas as aragens, sem sequer se darem conta de que houve um dia um fétido Pinochet que as quis sujeitar.
10 de dezembro de 2006
CONTO DE NATAL (COM ASAS...)

Entrou-se então no mês de Junho. Todos os dias, em tronco nú, diante do espelho, o nosso herói procurava saber, por comparações continuadas, do progresso ou retrocesso dos seus apêndices. Acabou por concluir, muito temeroso, que as suas asas ficavam dia a dia mais fortes e que na região respectiva se ia formando uma cartilagem flexível, tornada móvel com o desenvolvimento. Os colegas de trabalho cada vez mais lhe estranhavam o uso do sobretudo e o pouco discreto isolamento a que se ia remetendo. Aos poucos, deram-se a reparar no volume das espáduas. Diziam uns que o homem tinha dois tumores homólogos, em adiantado estado de evolução. Outros opinavam que se deveria tratar de um valioso espólio de família, talvez uma herança constituída por objectos de ouro, de que o feliz beneficiado se não queria separar. Alguns asseveravam, até, que aquele estranho companheiro colara às costas as missivas de um amor clandestino, para que a empregada de limpeza as não lesse, quando, na sua ausência, lhe tratava da arrumação do quarto. No meio de tantas conjecturas, algumas apostas se fizeram. Os mais atrevidotes roçavam-lhe as costas, a pretexto da exiguidade do espaço, ou passavam-lhe as mãos pelos ombros, em jeito de forçada confraternização. O nosso homem dava conta de todos estes manejos, mas fazia-se desentendido. No seu íntimo, acreditava que tudo aquilo se tornaria trivial e que, passado o momento da curiosidade generalizada, se iria restabelecer a normalidade. Um dia foi chamado ao gabinete do chefe de repartição. Este disse-lhe: --Caro amigo, (o chefe de repartição iniciava assim todas as conversas que pressentia delicadas), caríssimo amigo,(o chefe de repartição reservava este cumprimento para as reprimendas), o senhor anda a perturbar-me o serviço. Este estado de coisas não pode continuar. Os seus colegas murmuram pelos cantos, perdem o tempo todo contando anedotas a seu respeito e não dão despacho ao expediente. Eu não conheço nem quero conhecer os seus problemas (nesta altura o chefe de repartição sentia-se roído por uma curiosidade quase mórbida), embora o estime sinceramente (era uma óbvia mentira). Mas entendo que, estando doente, deverá tratar-se; estando apaixonado, deverá casar-se; estando receoso de ladrões, deverá guardar os seus valores num banco. Assim falou o chefe de repartição. Depois pigarreou, procurando uma posição mais confortável na cadeira almofadada. Decorreram alguns segundos, densos de tensão. O homem bisonho sentiu-se perdido. Feitas as contas, não era respeitoso nem respeitável dizer ao Senhor Doutor, personagem a todos os títulos estimável e de trato refinado, que lhe andavam a nascer umas asas. Manteve-se calado, olhos no chão. O Doutor respirou fundo, como se a sua alma suportasse todo o tédio do mundo: --Bem; vejo que não quer confiar em mim. Faz muito mal, mas o problema é seu. Meta uma licença. E despediu-o, com um gesto seco.
Nessa noite, o herói da nossa história mal dormiu. Contemplou o céu por largo tempo na janela, julgando ser possível abismar-se nos mil luzeiros que piscavam na lonjura. Aconteceu então uma singular maravilha. Os astros mais distantes, coruscando estilhas de luz, baixaram rapidamente sobre a cabeça do homem bisonho e transformaram-se em pássaros, algaraviando doidices. Havia-os de todas as cores, formas e exotismos, desde os graciosos bicos de lacre ao tucanos recurvos, desde os flamingos longilíneos às triviais cotovias. E era como se na gralhada anodina e nos adejos sem regra toda a passarada lhe estivesse a gritar: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre! "Exortação descomedida, esta, para um funcionário público zeloso e cauto, sabedor de que cada reacção da sua lavra careceria de papel timbrado da repartição e do correspondente despacho decisório de algum senhor doutor da mais alta hierarquia funcional. Aquele homem vulgar conhecia bem os sopapos da vida e as realidades burocráticas das repartições. Pois se nem os chefes de divisão se atreviam a voar, como poderia ele, um amanuense de terceira classe, sem protectores, sem recomendações da hierarquia, sem acesso ao selo branco, soltar-se da honrada solidez do soalho do quarto e acometer o espaço em alegria ébria?
E no entanto... sentia nas asas um frémito de alvoroço, uma imposição de partida, uma exigência vibrátil de céu, como se ele próprio não fora já aquela bisonha e vulgar criatura, ciente apenas de carimbos, de taxas de água e de licenças de cães. Fechou precipitadamente a janela e recuou, assustado, para o fundo do seu quarto. Nem assim, porém, se desvaneceu a imposição daquele veredicto do destino, soando agora nos seus ouvidos em intensidade abafada: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre!" Deu consigo a fitar, descoroçoado, o velho sobretudo ; e logo se lembrou da embófia do chefe da repartição, da manha perversa dos que por ele se roçavam na demanda de um segredo privado e dos mil gestos iguais e previsíveis do trabalho , gastos entre a máquina das fotocópias e a banca dos assentos.
Quando o período de licença se esgotou, os colegas de ofício remordiam a impaciência. O chefe consentira que o regresso do bisonho e vulgar amanuense fosse pretexto para uma assuada, para uma paródia falsamente inocente, no fim da qual lhe seria despido, se necessário à força, o irritante sobretudo e desvelado aos circunstantes o insuportável enigma. Ficaria a conhecer-se, então, talvez a doença, talvez a fortuna, talvez a afeição.
Como não regressasse no dia aprazado e nos seguintes, o chefe mandou que dois ou três funcionários, dos mais ladinos, se deslocassem à casa de hóspedes onde se aboletava o faltoso. A proprietária deu-lhes parte de um caso singular, já transmitido à polícia: o hóspede desaparecera sem deixar rasto e a única estranha nota que houvera sido encontrada no quarto daquela vulgaríssima criatura fora uma mão cheia de penas muito brancas, caídas junto ao rodapé da janela entreaberta.
O caso foi comentado em registos divergentes nos conciliábulos do serviço. Diziam uns que o homem bisonho e vulgar sucumbira à doença, outros que realizara o amor e os demais que cedera à fortuna.
E todos acertavam, enganando-se. E todos se enganavam, acertando.
7 de dezembro de 2006
MAIS UM BLOG
Mais um Blog? Sem dúvida. Mas é o meu Blog, ou seja, aquele que transporta a minha impressão digital. Que vai ele ser? Nada sei sobre isto, tendo apenas a certeza que ele comportará a marca da minha individualidade. Não há duas iguais. Larguemos velas e façamo-nos ao mar. Até breve.
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