1 de fevereiro de 2007

COIMBRA (1)


Como quase todas as cidades portuguesas da província, Coimbra foi até aos princípios do século XX uma urbe pequena e cheia de vagares. Viveu sempre da fama que lhe granjeou a sua vetusta Universidade, que, empoleirada no cimo de uma colina, cumpriu a função de substituir as grutas dos presépios de faz-de-conta, as quais ocupam em regra os cumes de cenários imaginados, para onde confluem pastores, lavadeiras, soldados rasos, abades nédios, labregos de sachola às costas e outras criaturas de opereta. Os estudantes que por ela passaram, nas diferentes e sucessivas gerações, teceram-lhe o mito e celebraram-lhe a maravilha, talvez sem se darem conta de que tal mito se identificava com a pretérita juventude, vivida e perdida, e de que tamanha maravilha era a da saudade de se sentirem belos, fortes e promissores. Assim, à medida que as promessas foram decaindo e que as nostalgias foram apertando, na proporção directa do embranquecimento dos cabelos, Coimbra ganhou foros de sítio invulgar, com magias e sortilégios muito peculiares, acomodados numa nesga de memória tenaz e transfiguradora. A cidade foi outrora cingida por uma cintura de muralha, que o passar do tempo e a modernização urbanística metodicamente aboliram, até quase só dela restar o nome e a reminiscência toponímica das couraças já sem couro. O costume foi decretando que da Porta de Almedina para cima, as zonas adjacentes ao Quebra-Costas, à Sé Velha, a Sub-Ripas e ao Paço Real ficassem reservadas à locação dos professores, dos funcionários e dos estudantes da Universidade. Pelo contrário, o perímetro exterior do velho burgo estaria destinado ao “filhote da terra” ou “futrica”, alheio __ por vocação ou maldição __ ao trabalho universitário, ou de serviço universitário, sob todas as suas formas. Alguns monarcas portugueses que sucederam a D. Dinis, instituidor e dado às trovas, levaram o seu puritanismo protector ao ponto de decretarem, graves e morigeradores, que as mulheres de mau viver não poderiam habitar o território demarcado para os zeladores e frequentadores da Universidade. Ou seja: louçanias, galanices e galanteios, com ou sem a correspondente compensação sensorial, só além do Arco de Almedina. Assim, as Messalinas do Mondego foram concentrar-se, preferencialmente, no Terreiro da Erva e noutros “loca infecta”, oferecendo pascigo competente e profissional ao indigenato “futrica” e ao esquivo alienígena em estado de necessidade, este último em escapada furtiva à tutela territorial de Minerva. Por outro lado, Coimbra beneficiou até 1911 do facto de deter o monopólio da formação universitária. As elites do país passaram obrigatoriamente por ela, no lustro correspondente à duração de um curso superior. A Universidade, como todas as Universidades do mundo, revelou sempre, no particularismo da sua missão institucional, uma feição conservadora muito marcada. É que todas as Universidades do mundo conservam patrimónios ancestrais de saber e só mudam, só se revolucionam, na medida em que as aquisições de saber novo mitigam e corrigem o imobilismo do saber velho, tido como venerando e duradouro. O confronto estabelecer-se-á sempre entre a imponente massa das noções acumuladas e a pequena réstia dos conhecimentos acabados de alcançar. A Universidade de Coimbra sofreu o labéu da presença de Salazar no seu elenco de docentes. Isto tem permitido aos seus detractores qualificá-la como ninho preferencial da reacção absolutista e do imobilismo clerical. Trata-se de um lugar-comum estafado e de insustentável verosimilhança. É que a Universidade de Coimbra também contou com os nomes de Manuel Emídio Garcia, de José Falcão, de Afonso Costa ou de Bernardino Machado na sua docência catedrática. Cidade dual no eterno confronto que a cindiu entre “doutores” e “futricas”, entre a zona baixa e a parte alta, entre os Te Deum da Sé Nova e as vozearias profanas das suas tascas académicas __ a das Camelas, a do Paço do Conde, a do João Ladrão, a da Democrática, etc, etc __ , Coimbra , que deixou de ser a Lusa-Atenas para passar a ser a Lusa-Apenas, Coimbra mantém incólume o seu fundo sedutor e o seu sortilégio de lirismo. É que por aqui viveram e amaram, na plétora das juventudes perdidas, muitos dos que a ela vêm em emocionados reencontros, para poderem voltar a sentir os fluxos de um sangue rubro e quente, volteando em veias renascidas, ao serviço do bater compassado de corações que querem , acima de tudo, permanecer em estado de paixão.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Como lhe disse, no comentário à postagem antecedente, tenho agora uma réstia de tempo para poder deixar aqui mal ordenadas palavras sobre a reflexão que nos deu dessa Coimbra ateneia.
Disserta, logo de início, sobre a saudade mítica que a velha universidade deixou - e, provavelmente, deixa - em todos quantos por lá passaram. Explica que não é a saudade de Coimbra, mas dos tempos juvenis, o verdadeiro motor de um tal sentimento. Pois, ainda que por Coimbra não tenha andado, permita que discorde!
Discordo, porque, se assim fora, quantas Coimbras haveria em cada cidade com liceu? E em Lisboa e no Porto, por terem academia, pelo menos, desde 1911 - quase cem anos?
Não, meu caríssimo Amigo, Coimbra não guarda o sortilégio que a domina por mera invensão ou saudade! Não. Provavelmente - julgo eu - o mito nasceu daquela separação forçada, ou forçadamente inventada, de dois "mundos" - o da velha academia e o dos indígenas.
Terá sido essa "fricção" transitória - delimitada em cada ano por um lustro - a autora do mito. Coimbra foi (é) uma cidade que acolhe todos os anos uma nova onda de gente moça, esperançada e esperançosa, dando-lhe-se na certeza de a ir perder cinco anos após.
Como se terá moldado a cultura dos "incultos" indígenas nesse contacto fugidio e, paradoxalmente, sempre constante e renovado?
Estar-me-ei a fazer compreender? Para mim, o segredo não se encontra em quem por Coimbra passou um curto (tão longo!) período da vida, mas em quem soube estar e receber, alimentando essa passagem. Fazendo dos passantes gente acarinhada, gente querida, desejada.
Poderá ser olhado assim o mito dessa Coimbra tão bela?
Pouco lhe posso mais dizer, mas deixo para suportar a sua justa e sabedora crítica, a hipótese anterior.
Fico à espera de mais sobre Coimbra...

Pedro Bingre do Amaral disse...

...e talvez que certo espírito de excepcionalidade existencial se vá perdendo em Coimbra. De principal universidade do mundo lusófono, acolhendo estudantes de Timor ao Brasil e todas as proveniências da "metrópole", a academia da Lusa Atenas estiolou, tornando-se uma modesta instituição que reina sobre um só distrito. Salvo nas faculdades de Direito e de Medicina, a maioria dos que sobraçam as sebentas coimbrãs provém dos concelhos vizinhos. Perdeu-se, receio, o espírito nefelibata e exótico da comunhão de jovens portugueses vindos dos quatro cantos do mundo...