Nós, os que cultivamos a História, somos todos arqueólogos pelo ditame das nossas servidões profissionais: é que todos ambicionamos alcançar a plenitude daqueles raros momentos mágicos em que o “logos” de uma “arquê” insistentemente perseguida se nos desvela na sua magnífica nudez de corpo e alma. Supomos então que a ciosa intimidade das coisas perecidas, que o escondido desígnio da vida ausente acaba por ceder à nossa pertinácia e à nossa paixão. Para tal, fotografamos velhas ruínas, compulsamos amarelecidos incunábulos, visitamos templos românicos e catedrais góticas, rimos na companhia do Zé Povinho de Bordalo Pinheiro, sondamos a alma atormentada de Antero de Quental, tentamos decifrar as inscrições de lápides musgosas, julgamos acompanhar o desembarque de Garrett e Herculano e dos 7500 soldados do Mindelo, imaginamos escutar as profecias enigmáticas da Pítia do Templo de Delfos e, através de tudo isto, pretendemos vencer as imposições do Esquecimento, esse inseparável companheiro do Tempo. Mas, ao contrário dos pacientes ou consulentes que se encontram fisicamente presentes nos consultórios dos psicólogos e dos psicanalistas, prontos a responder ou a resistir ao inquérito a que se sujeitam, o objecto da nossa curiosidade científica, da nossa febre historial, é virtual, distante, ausente. O desafio da História consiste em descobrir o significado da coisa ausente através da ampliação e correlação dos significados parcelares atribuíveis a coisas presentes. O documento, quer se trate de uma pedra, de um vitral, de um texto, de um instrumento de uso corrente, de uma fotografia, de um monumento arquitectónico, de uma pintura ou de um ícone religioso é o objecto instrumental que nos poderá conduzir à proximidade do objecto real da História, ou seja, à vida já cumprida. Enquanto historiadores, somos os arautos de ressurgimentos ou de revivescências impossíveis. Mas é precisamente o desafio desta radical impossibilidade que constitui o acicate mais poderoso da nossa missão de guardadores da contingente memória.
22 de março de 2007
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2 comentários:
Interessante síntese acerca do trabalho e da função do profissional da História.
O estudo do passado é, de facto, fundamental para o conhecimento da alma de um povo...para o conhecimento da nossa própria alma.É o que nos permite perceber certas trajectórias e definir novos rumos. É, no fundo, a aprendizagem da vida.E esta forma de aprender é , sem dúvida, especial. É dar voz a quem já a perdeu; é dar vida a quem já morreu. Esse é o grande "acicate" da História e do trabalho do historiador: uma permanente relação dialógica entre passado e presente, com objectivos essencialmente formativos e pedagógicos.
Esta missão torna-se particularmente importante se pensarmos, por exemplo, no rumo que está a levar o nosso pequeno Portugal: um governo prepotente,com aparência de socialista, mas com uma prática política profundamente de direita; a inexistência de uma oposição sólida; a gradual perda de direitos por parte dos cidadãos e (o que eu acho extremamente perigoso), o início de uma certa "mística do líder", algum saudosismo em relação à ideia de "salvador da pátria".
É aqui que o papel da História, na minha modesta opinião, se torna relevante, no sentido de relembrar que as grandes ditaduras estão ainda bem perto de nós; que elas iniciaram a lógica do "tudo é possível"; que elas foram as grandes responsáveis por desalojar deste mundo, que deveria ser uma Casa Comum, grandes segmentos populacionais.
Estamos , pois , no momento certo para reavivar no espírito das pessoas que a vida é feita de opções...certas e erradas. E que só poderemos fazer a opção certa se compreendermos ao que pode conduzir a opção errada. Neste domínio, a História terá sempre uma importante palavra a dizer.
Caro Amigo,
Como sempre, acho que o seu sentido de observação das coisas e da Vida, o leva ao cerne dos problemas. Contudo – lá venho eu com a incómoda conjunção copulativa – se o fazedor de História é tudo quanto diz (e assim o deve ser) verdade seja, muitas vezes se acoitam ao abrigo de tal ofício, artífices de reconstruções do passado que o subvertem, servindo senhores mais temporais do que a intemporal musa Clio. E fazem-no rodeando-se de tais cuidados que facilmente enganam os incautos estudiosos, desviando-os da boa compreensão do Passado para os conduzirem por caminhos onde imperam interesses e ideais nem sempre totalmente recomendáveis. E, afinal, porquê?
Porque, segundo a minha, talvez, pouco avisada opinião, o historiador, mais do que dar voz e vida ao Passado – coisa difícil ou mesmo impossível – se tem de ficar pelo trabalho mais fácil – embora extenuante – de explicá-lo. Explicá-lo nos contornos mais ou menos nebulosos de antanho, usando lampiões donde irradia a luz do Presente… a tal «proximidade» de que o meu Amigo fala. E é aqui que surgem as tentadoras vozes autoras da distorção. Explicar o Passado, por exemplo, num contexto de uma Europa das pátrias não é o mesmo que na textura de uma União Europeia; explicá-lo subjugado à canga de uma ditadura não tem semelhança ao que é feito se se vive em democracia. Não é nem o «explicador» nem o «explicado» quem condiciona a explicação; esta fica condicionada pela capacidade compreensiva da audiência e, mais do que tudo, pela de quem «comanda» esta.
Afinal, fazer História é aceitar amarrar-se ao tear de Penélope, atirando a lançadeira para entretecer a trama na teia que amanhã se desfará para novos motivos surgirem mais belos ou mais aceitáveis. Fazer História é, como com muita autoridade afirma, um desafio.
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