10 de março de 2007

RETRATO DE VELHO (COM PEIXE)

A maior evidência da desesperança humana está, creio, no desejo de imortalidade que assola cada exemplar da espécie. Entre o “ser ou não ser” da perplexidade hamletiana e o cansaço de dever cumprido do pescador descrito por Hemingway, em “O velho e o mar”, – uma obra-prima absoluta – , eu prefiro francamente a simbologia do segundo. O velho pescador tinha o sonho de pescar o maior dos peixes antes de se retirar, discreto, da vida. Não cobiçava a Eternidade, nem a transcendência do Tempo transformado em promessa persistente. Como era pescador, o que ardentemente desejava era ser posto à prova no maior e mais duro dos combates. E este combate não se travaria entre um qualquer Deus e um qualquer Anjo. Inscrevia-se, isso sim, no marulhar das ondas e na profundeza dos abismos líquidos. O desafio era palpável. Começava por se pressentir nas tábuas do barco, na curva dos anzóis, na massa dos engodos. E ia para baixo, para o ventre aquoso das águas salgadas; não para cima, para o azul parado de um céu riscado por farripas de nuvens. Não se tratava de uma alma impulsionada por um qualquer chamamento do Além. O negócio era outro: consistia em filar o maior e mais renitente dos peixes, dar-lhe peleja sem tréguas, vencer-lhe os assomos de fuga, dobrar-lhe os esticões da resistência e, finalmente, atá-lo, como um troféu, entre a popa e a proa da barcaça, trazendo-o para terra. Assim se cumpriria o destino do velho pescador, certificando-se o mais alto grau da sua humanidade. Tudo ficaria então certo e perfeito. Aquele velho não tinha outra Igreja para além do sobrado do seu bote. E entre poder vir a salvar a sua alma ou poder vir a arpoar o seu peixe, a escolha, feita de há muito, propendia para o último destes termos. Sabe-se como a história acabou. O peixe foi pescado no termo de um embate ciclópico, que mobilizou todas as energias do pescador. Extenuado, ele ainda conseguiu fixar a imensidade daquele peixe ao costado do seu barco. Depois vieram outros peixes predadores, tubarões aos cardumes, e comeram-lhe a totalidade da presa. O velho chegou à praia e houve um menino a chorar por ele, supondo-o triste e decepcionado. Foi a esse menino que ele confessou que o que queria agora era dormir. Acho que o menino voltou a chorar, embora Hemingway não o tivesse escrito. E o velho pescador adormeceu profundamente. Tão profundamente que talvez nunca mais tenha acordado - volto eu a dizer... Quero acreditar que tenha fechado os olhos em paz. Afinal, alcançara a imortalidade possível : pescara o seu fantástico peixe, e nem a predação final lhe retirara o agridoce de sentir inviolada e cumprida a missão de toda uma vida.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

É tão publicamente íntimo o seu desabafo que quase tenho receio de o macular com as minhas palavras.

Estou, também, consigo no desejo de preferir «pescar o grande peixe». O maior da minha vida.
Julgo que o grande desafio de viver está na própria vida e não no para lá dela. Está em superarmo-nos num combate talvez desigual, sendo capazes de construir obra que tenha adquirido, aos nossos olhos, a grandeza do quase impossível. Obra que pode aparecer aos outros esfacelada, mas que, no momento de executá-la, foi imensa.
Julgo que só assim admite viver e morrer quem sente o acto de estar vivo como um grande desafio, um grande combate. Um combate para «fora» e para «dentro» de si mesmo.
À placidez dos grandes santos contemplativos, prefiro a audácia dos grandes soldados. Dos soldados que se batem por grandes causas.

Um abraço

Anónimo disse...

O velho e o mar...bom

Relato de um náugrado( garcia Marquez)..muito bom