6 de março de 2007

VARANDA DE SONHOS

Ainda eu usava bibe , a família mudou-se para Trancoso, onde o meu Pai passou a exercer a sua actividade profissional. Passámos a habitar um andar sem direito a especial menção, igual a quase todos, mas que apresentava a particularidade da sua situação. Localizava-se numa rua estreita, em frente da cadeia local e de costas voltadas para o castelo. Uma das celas da cadeia, bem gradeada, era visível da nossa varanda. Por seu turno, o castelo apenas entremostrava duas ou três ameias altas e a sua realidade era mais pressentida do que provada. A cela, embora frequentemente vazia, mostrava de longe em longe um ou outro preso. E estes prisioneiros vinham muitas vezes tomar ar ou fumar junto do gradeamento. Contemplava-os da varanda e ficava sempre muito impressionado com a fisionomia fechada e enigmática desses presos. Por outro lado, o castelo que eu mal via – e que só era aberto para uns raros turistas de fim de semana – representava o lugar dos meus primeiros sonhos românticos. Por lá vagavam hipotéticas meninas lindas e loiras, completamente inventadas, às quais eu atribuía a propriedade de tornarem maravilhosas todas as realidades. Enquanto vivi em Trancoso, esperei sempre que um dia, uma dessas fadas, volitando por sobre as ameias, viesse dar um outro rosto às faces estanhadas dos prisioneiros. Ainda hoje continuo a pensar que até a fisionomia dramática dos punidos pela justiça dos homens poderia ser dulcificada se lhes assistisse a ventura de serem visitados, nas vastas pradarias da sua fantasia, por damas loiras, locatárias de fantásticos castelos sem grades.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Vicissitudes informáticas e muito trabalho de escrita e investigação têm-me afastado do contacto deste blog que tanto admiro.
Curiosa e propícia ao sonho e aos voos imaginativos a localização da sua casa em Trancoso! Entre um castelo e uma prisão...
Isso tem de marcar para uma vida, quando se é criança e se está a desabrochar para o Amor, vogando, ainda, no mundo das fantasias. Das puras fantasias.
«Ainda hoje continuo a pensar que até a fisionomia dramática dos punidos pela justiça dos homens poderia ser dulcificada se lhes assistisse a ventura de serem visitados, nas vastas pradarias da sua fantasia, por damas loiras, locatárias de fantásticos castelos sem grades.»
Na transcrição do final deste seu desabafo o que me chamou mais a atenção foi o «até». Propositado ou inconsciente ele fala não só do pretérito desejo juvenil como, também, da actual fantasia do Homem adulto. Este «até» não é restritivo; pelo contrário, amplia aos pobres presos um desejo que se quer para todos, mesmo, e especialmente, para os que não sofrem a clausura das terríficas grades do cárcere.
Acredito que, de vez em quando - e só de quando em vez - na vida dos homens se atravessam pequenas fadas, difíceis de agarrar, difíceis de conservar, para, por escassos momentos, nos dulcificarem os traços profundos, visíveis ou invísiveis, que nos sulcam o semblante, mas, mais do que o parecer, nos marcam aquilo a que o Povo chama alma. Quando tal ocorre, o momento é mágico! Tão mágico que vale a pena continuarmos a acalentar os sonhos de fadas que nos enchem o inconsciente sem disso nos darmos conta (se dessemos, estaríamos no domínio do consciente, claro!).

Fico-lhe grato pelo momento de divagação reflexiva que me proporcionou.
Um forte abraço.

P.S. - Temporalmente já não é oportuno deixar o comentário na postagem sobre o Zeca Afonso, contudo, não posso eximir-me a dizer-lhe que, por ter sido uma voz na noite escura, ele, merecidamente, tem o nome ligado à Liberdade dos Portugueses na imortal «Grândola, Vila Morena» já muito esquecida entre as novas gerações.
Obrigado, por ter trazido aqui a recordação daquele que, em verso, disse aos Portugueses que em Portugal «Os Vampiros» comiam tudo e não deixavam nada.