9 de maio de 2007

ALEGORIA DO TEMPO

Em figuração alegórica, gosto de comparar a vida humana a uma escalada a partir do sopé de uma pedregosa mas bela colina. A primeira fase é aquela em que as coisas estão demasiadamente próximas de nós e em que o esforço da subida mal se sente. A vizinhança das coisas que nos rodeiam trivializa-as a um tal ponto que mal reparamos nelas. Estão ali – e é tudo. Esta percepção imediata impede-nos de as relacionar, de lhes procurar conexões e alianças, de as sopesar e até de as valorizar convenientemente. A Mãe está ali ao pé, pronta a proteger-nos e a amparar-nos nas quedas. O Pai repete todos os dias o gesto de abrir a porta, quando parte para o trabalho, e o som de entrar em casa com a pergunta “há gente?”, quando regressa. Os Amigos convocam-se e aparecem invariavelmente, para festejar um aniversário, para ouvir aquela música de sensação, para discutir aquele projecto que surgiu em comum. Estão todos lá, com a naturalidade das paisagens fixas, das realidades alinhadas numa base sólida, tida por inamovível. E no entanto, de longe em longe, a estabilidade desse pequeno mundo recebe o golpe de um pequeno terramoto. A Mãe adoeceu; o Pai partiu por longo tempo; o Amigo – disseram-nos – vai ser operado a uma maleita qualquer. Mas persuadimo-nos de que a doença será breve e curável, a partida durará apenas o tempo de saudades transitórias e a operação correrá muito bem, pois o cirurgião é de renome. De súbito, damo-nos conta que o tempo foi passando e que já nos encontramos a meio da subida. E quando voltamos a olhar, com maior atenção e mais sagaz inteligência, verificamos que no rosto da Mãe se cavaram rugas que outrora lá não estavam; que os movimentos do Pai são mais pausados, mais tacteados, mais cautos, menos ágeis; e que o Amigo já não aparece necessariamente naquela hora de urgência ou de doméstica festividade. Aliás, nós próprios iremos avocar, no galgar íngreme da colina, a posição e o estatuto dessas figuras emblemáticas. “Filho és, pai serás… ” – e com esta cegarrega da sabedoria popular, a progressão da subida, feita com alvoroço nos primeiros arrancos, converte-se num exercício brevemente reflexivo. Debatemo-nos com a falta de tempo enquanto o tempo por nós vai passando, implacavelmente: as urgências que nos conclamam a meio do percurso são demasiadamente impositivas – urgências com a escola das crianças, com o seguro do automóvel, com as compras do mês, com o cumprimento dos deveres profissionais, com o fazer da barba, com a ida ao cabeleireiro, em suma, com as mil coisas que nos assolam o quotidiano. Será apenas no momento em que os Pais já partiram, numa partida sem retorno, em que os Filhos já nos deixaram a casa, para só nos visitarem como Amigos mais próximos, em que os Amigos nos falham à chamada, será nesse momento que concluímos ser já considerável, deveras considerável, a caminhada cumprida, a partir do sopé da vida. Olhamos então à nossa volta e vemos que as coisas de outrora, tão próximas, tão singulares, tão visíveis, se talham, em contorno indeciso, no horizonte da distância. Estonteados, reparamos então em nós mesmos, para descobrirmos no nosso rosto a face rugosa da Mãe que já não está, na vacilação dos nossos passos, o eco (só o eco) alquebrado dos gestos paternos, agora ausentes, no silêncio dos que nos quiseram bem, o sulco discreto de uma saudade só nossa e sem fim. Estamos, finalmente, no topo. Olhamos em todas as direcções e descobrimos, enfim, que a nossa maior sabedoria se acumula naquele cume da vida em que se divisa o tempo de dizer adeus.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Meu Querido Amigo,
Não imagina como hesitei em face da sua, tão realista quanto enternecedora, postagem. Hesitei, porque não sei até que ponto me posso apropriar do seu espaço para o tornar meu; hesitei, porque senti que me tinha de expor em toda a nudez dos meus sentimentos, das forças mais profundas que me guiam a animam.
Hesitei, mas, tomada a decisão, aqui estou de coração aberto e sem vergonha a invadir com as minhas reflexões as suas tão belas e tão reais.

A «Alegoria do Tempo», compreendo-a, mas sinto-a de uma maneira tão diversa!
É que, para mim, estive, afinal, sempre em cumes da Vida. Explico.

Nasci com saudades e sempre me conheci assim. Saudades de todo o tempo que passou, mesmo daquele que, conscientemente, não vivi.
Quando, em criança, ouvia o meu Pai contar estórias da sua juventude sentia imensa pena de não ter vivido aquela época, porque me identificava em pleno com tudo o que escutava. Afinal, era como se já tivesse atingido um cume, como se fosse «antigo» num tempo de meninice. Em jovem recordava a infância com saudade tal como se não houvesse mais vida para viver. E tudo se foi repetindo assim, exactamente assim como lhe conto, década após década.

Em mim, o passado tem a força de um presente que desejo reviver em cada instante.
Foi esta compulsão que me atirou para a História: descobrir e reviver, pondo de pé o que estava deitado e coberto pela poeira dos tempos; reviver intensamente o que outros viveram para compreender e explicar o que não foi explicado. Deste modo, estou sempre no cume de uma qualquer montanha que, sendo a minha, não a sinto como tal.

Claro que passei por esse processo, que tão bem descreve, de isolamento real. Hoje, pelo lado do meu Pai, sou o decano masculino da Família, tal como já há muito que o sou pelo lado da minha Mãe. Estou na primeira linha do assalto à Vida. Deveria viver essa distância de «terra de ninguém», a que se chama Futuro, com o prazer de cada dia – o amigo com quem se almoça, a conversa que se deixa correr, o silêncio que se ouve, o neto que se acompanha, o sol que nos acaricia, a chuva que tamborila nas vidraças, o rio que se avista da janela, a música que se escuta de olhos fechados. Pois é, era tempo de degustar todos esses pequenos prazeres (ou comummente tidos como tal), mas para mim o verdadeiro prazer está em rememorar o passado – o meu e aquele que não vivi fisicamente!
E neste viver desconcertado há um travo amargo e, simultaneamente, doce; há uma despedida constante e uma chegada permanente.

Está a ver! Ocupei-lhe espaço e nada de útil acrescentei à sua belíssima postagem. Falei de mim, como um egoísta, quando deveria comentar a partilha que fez connosco.
Um abraço

Anónimo disse...

Dois testemunhos que considero excelentes!
Parabéns aos dois autores
Maria Pinto