10 de dezembro de 2006

CONTO DE NATAL (COM ASAS...)

Era um homem vulgaríssimo e bisonho. Tinha os direitos e deveres de todo o mundo, e era mais atento a cumprir os segundos do que a reclamar os primeiros. Via-se todos os dias ao espelho, quando fazia a barba. Tinha lido a Metamorfose, de Kafka, há poucos dias; não entendera bem aquelas letras mas pensara, com a filosofia que lhe era habitual, que a deficiência devia ser sua, porque ouvira citar esse escritor ao seu chefe de repartição, pessoa de letras e de considerável reputação. Ora aconteceu que por uma pouco dormida madrugada, em começos de Maio, ao rapar a barba com toda a consciência em frente do eterno espelho, aquele homem, estremunhado e bisonho, reparou que lhe estavam a nascer, junto às omoplatas, umas asas membranosas e transparentes. Ficou preocupado. Aquilo podia valer-lhe uma reprimenda do encarregado de secção e um dito mordaz do chefe de repartição. Era até capaz de se tratar de um caso especial de doença infecto-contagiosa e, nesse caso, poderia ser obrigado a fazer quarentena, com o desconto efectivo na folha dos vencimentos. Para disfarçar o volume daquelas asas inesperadas, o nosso homem envergou um sobretudo velho e passou a alegar, para os amigos e conhecidos que lhe estranhavam a bizarria do abafo em dias de sol, que era muito dado a catarros e laringites. Continuando a pensar, com inusitada gravidade e ponderação, no momentoso assunto, o homem bisonho concluiu que deveria tentar esquecer o estranho fenómeno. De resto, poderia até acon­tecer que, com o tempo, as asas membranosas se desprendessem, caindo no chão como frutos apodrecidos.
Entrou-se então no mês de Junho. Todos os dias, em tronco nú, diante do espelho, o nosso herói procurava saber, por comparações continuadas, do progresso ou retrocesso dos seus apêndices. Acabou por concluir, muito temeroso, que as suas asas ficavam dia a dia mais fortes e que na região respectiva se ia formando uma cartilagem flexível, tornada móvel com o desenvolvimento. Os colegas de trabalho cada vez mais lhe estranhavam o uso do sobretudo e o pouco discreto isolamento a que se ia remetendo. Aos poucos, deram-se a reparar no volume das espáduas. Diziam uns que o homem tinha dois tumores homólogos, em adiantado estado de evolução. Outros opinavam que se deveria tratar de um valioso espólio de família, talvez uma herança constituída por objectos de ouro, de que o feliz beneficiado se não queria separar. Alguns asseveravam, até, que aquele estranho companheiro colara às costas as missivas de um amor clan­destino, para que a empregada de limpeza as não lesse, quando, na sua ausência, lhe tratava da arrumação do quarto. No meio de tantas conjecturas, algumas apostas se fizeram. Os mais atrevidotes roçavam-lhe as costas, a pretexto da exiguidade do espaço, ou passavam-lhe as mãos pelos ombros, em jeito de forçada confraternização. O nosso homem dava conta de todos estes manejos, mas fazia-se desentendido. No seu íntimo, acreditava que tudo aquilo se tornaria trivial e que, passado o momento da curiosidade generalizada, se iria restabelecer a normalidade. Um dia foi chamado ao gabinete do chefe de repartição. Este disse-lhe: --Caro amigo, (o chefe de repartição iniciava assim todas as conversas que pressentia delicadas), caríssimo amigo,(o chefe de repartição reservava este cumprimento para as reprimendas), o senhor anda a perturbar-me o serviço. Este estado de coisas não pode continuar. Os seus colegas murmuram pelos cantos, perdem o tempo todo contando anedotas a seu respeito e não dão despacho ao expediente. Eu não conheço nem quero conhecer os seus problemas (nesta altura o chefe de repartição sentia-se roído por uma curiosidade quase mórbida), embora o estime sinceramente (era uma óbvia mentira). Mas entendo que, estando doente, deverá tratar-se; estando apaixonado, deverá casar-se; estando receoso de ladrões, deverá guardar os seus valores num banco. Assim falou o chefe de repartição. Depois pigarreou, procurando uma posição mais confortável na cadeira almofadada. Decorreram alguns segundos, densos de tensão. O homem bisonho sentiu-se perdido. Feitas as contas, não era respeitoso nem respeitável dizer ao Senhor Doutor, personagem a todos os títulos estimável e de trato refinado, que lhe andavam a nascer umas asas. Manteve-se calado, olhos no chão. O Doutor respirou fundo, como se a sua alma suportasse todo o tédio do mundo: --Bem; vejo que não quer confiar em mim. Faz muito mal, mas o problema é seu. Meta uma licença. E despediu-o, com um gesto seco.

Nessa noite, o herói da nossa história mal dormiu. Contemplou o céu por largo tempo na janela, julgando ser possível abismar-se nos mil luzeiros que piscavam na lonjura. Aconteceu então uma singular maravilha. Os astros mais distantes, coruscando estilhas de luz, baixaram rapidamente sobre a cabeça do homem bisonho e transformaram-se em pássaros, algaraviando doidices. Havia-os de todas as cores, formas e exotismos, desde os graciosos bicos de lacre ao tucanos recurvos, desde os flamingos longilíneos às triviais cotovias. E era como se na gralhada anodina e nos adejos sem regra toda a passarada lhe estivesse a gritar: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre! "Exortação descomedida, esta, para um funcionário público zeloso e cauto, sabedor de que cada reacção da sua lavra careceria de papel timbrado da repartição e do correspondente despacho decisório de algum senhor doutor da mais alta hierarquia funcional. Aquele homem vulgar conhecia bem os sopapos da vida e as realidades burocráticas das repartições. Pois se nem os chefes de divisão se atreviam a voar, como poderia ele, um amanuense de terceira classe, sem protectores, sem recomendações da hierarquia, sem acesso ao selo branco, soltar-se da honrada solidez do soalho do quarto e acometer o espaço em alegria ébria?
E no entanto... sentia nas asas um frémito de alvoroço, uma imposição de partida, uma exigência vibrátil de céu, como se ele próprio não fora já aquela bisonha e vulgar criatura, ciente apenas de carimbos, de taxas de água e de licenças de cães. Fechou precipitadamente a janela e recuou, assustado, para o fundo do seu quarto. Nem assim, porém, se desvaneceu a imposição daquele veredicto do destino, soando agora nos seus ouvidos em intensidade abafada: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre!" Deu consigo a fitar, descoroçoado, o velho sobretudo ; e logo se lembrou da embófia do chefe da repartição, da manha perversa dos que por ele se roçavam na demanda de um segredo privado e dos mil gestos iguais e previsíveis do trabalho , gastos entre a máquina das fotocópias e a banca dos assentos.
Quando o período de licença se esgotou, os colegas de ofício remordiam a impaciência. O chefe consentira que o regresso do bisonho e vulgar amanuense fosse pretexto para uma assuada, para uma paródia falsamente inocente, no fim da qual lhe seria despido, se necessário à força, o irritante sobretudo e desvelado aos circunstantes o insuportável enigma. Ficaria a conhecer-se, então, talvez a doença, talvez a fortuna, talvez a afeição.
Como não regressasse no dia aprazado e nos seguintes, o chefe mandou que dois ou três funcionários, dos mais ladinos, se deslocassem à casa de hóspedes onde se aboletava o faltoso. A proprietária deu-lhes parte de um caso singular, já transmitido à polícia: o hóspede desaparecera sem deixar rasto e a única estranha nota que houvera sido encontrada no quarto daquela vulgaríssima criatura fora uma mão cheia de penas muito brancas, caídas junto ao rodapé da janela entreaberta.
O caso foi comentado em registos divergentes nos conciliábulos do serviço. Diziam uns que o homem bisonho e vulgar sucumbira à doença, outros que realizara o amor e os demais que cedera à fortuna.

E todos acertavam, enganando-se. E todos se enganavam, acertando.

2 comentários:

Jorge Martins disse...

Caro Colega,
Parabéns e seja bem-vindo à blogosfera!
Que é isso de já não ter idade para navegar na Internet e aproveitar este extraordinário meio de comunicação e informação?...
"Eles" que continuem na ignorância e no medo de aprender!
Bom Ano de 2007.
Jorge Martins.

Luís Alves de Fraga disse...

Meu Querido Amigo,
Muito satisfeito fico por o «ver» aqui neste espaço tão público, amplo e, paradoxalmente, pequeno onde toda a gente se conhece.
Para já, duplos parabéns: pelo blog e pelo conto. Duplo agradecimento, também: por estar connosco na blogosfera, por nos ter oferecido tão requintada prenda de Natal.
Saga do homem comum, modesto, bisonho, cumpridor, respeitador, pedidndo desculpa à vida por existir... Quantos ainda restam assim? Não lhes nascem asas nas costas - que essas coisas são coisas de contos maravilhosos! - mas nascem-lhes no espírito (diriam alguns, na alma) e com elas voam por espaços intangíveis, deixando, por vezes, para nós vermos, simples pedaços de si mesmos abandonados no canto onde sonham.
Alegoria magnífica, a sua, neste conto.
Fico exultante e à espera de mais.
Junto da minha janela, no 12.º andar, quedam-se, de quando em vez, algumas penas brancas. Não tão brancas como as do funcionário bisonho, mas brancas...
Um grande abraço com muita amizade