14 de março de 2007

AMPUTAÇÃO

Continuemos, então, a ouvir o pulsar das ondas. Outra história, bem diferente da que nos contou Hemingway , no seu “O velho e o mar”, foi a que nos trouxe Herman Melville com “Moby Dick”. Aí, o protagonista, mais do que o Capitão Ahab ou o índio Queequeg, é a Vingança. Uma Vingança inscrita na própria amputação de uma perna, provocada por Moby Dick, a grande baleia branca. Ahab é portanto um amputado. Todos os desejos de exemplares vinganças procedem de uma consciência de amputação. Quando os seres humanos se sentem amputados, seja por um bicho, por um parceiro infiel ou por um regime político, a consequência surge como proverbial: é do conhecimento íntimo das ilegítimas privações, das amputações, portanto, que se alimentam as exigências de vingança. E estas crescem na obscuridade, prezam as longas solitudes, cultivam a insociabilidade. Os marinheiros do “Pequod” acordavam muitas vezes, a meio da noite, ouvindo o bater da perna de pau de Ahab no convés do navio. – Mas que sinistro homem era aquele, perguntavam-se, ele que procurava os envoltórios do nevoeiro e as solidões da alta madrugada para remoer torvas fantasias ou inconfessadas antecipações? E que antecipava Ahab, no seu toc-toc-toc, lento e lento, nesse sincopado passear, que semelhava disparos de projécteis, desferidos para os longes das arcarias nocturnas? Queequeg, o índio tatuado, também acordava, mas esse não perfilhava o amargo compromisso da raiva asilada na concha da cerração. Esse, sacrificava a outras divindades, em orações estranhas, declamadas numa linguagem privativa, desconhecida do resto da tripulação. Ahab antecipava o delírio da sua vingança sobre o Grande Mal, sobre a gigantesca baleia branca, que lhe comera um dia uma das pernas. E até Queequeg, o colosso, pressentia como hostil e funéreo o supurar daquela baba raivosa, concentrada, imperativa, tão imensurável como a cúpula das noites marítimas. Ahab era a própria Vingança. E o grande ajuste de contas teria de fazer-se. Para que a própria morte pudesse, finalmente, descansar. Só então cessaria esse obsidiante toc-toc-toc, soando no vácuo das almas amputadas.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

«Quando os seres humanos se sentem amputados, seja por um bicho, por um parceiro infiel ou por um regime político, a consequência surge como proverbial: é do conhecimento íntimo das ilegítimas privações, das amputações, portanto, que se alimentam as exigências de vingança. E estas crescem na obscuridade, prezam as longas solitudes, cultivam a insociabilidade.»

Começo pela transcrição que acho curiosa. Nunca havia pensado na vingança como o fruto de uma amputação. Devo dizer, em abono da verdade, que, também, nunca senti ou nutri em mim sentimentos de vingança. É coisa que desconheço e, agora, interrogo-me: porque nunca fui amputado ou porque sou insensível à dor da amputação? E, contudo, está longe de mim qualquer sentimento de beatitude!
Se calhar, porque sou impulsivo e ajo no momento, descarregando toda a bílis que não tem tempo de se acumular para sair empedernida sob a forma de vingança, nunca senti desejo de me vingar. Acho que o tempo, ao contrário de me aumentar o rancor o desagrado, o desgosto, os vai atenuando até ganharem uma dimensão irrisória.
Ou será que para mim a vingança não faz sentido, porque me sinto naturalmente sociável, incapaz da solidão e de viver os seus macabros silêncios? Deveria exibir um gancho em vez de mão ou um toco de madeira no lugar de uma das pernas?
Estranhos sobressaltos os meus!

Olhe, este foi um dos textos que o meu Amigo publicou, até ao momento, que mais me fez pensar, debruçando-me sobre mim para esquadrinhar os recantos obscuros da minha consciência. Contorci-me e nada vi para além do quanto deixo escrito…
Os poetas e os filósofos desinquietam-nos o tranquilo caminhar nas veredas da Vida! Devemos-lhes homenagens por esse trabalho de, com oratórias aivecas, nos arejarem o solo mental pisado por muito anos de acomodação. Novas sementes podem ser lançadas… veremos se dão fruto!

Anónimo disse...

Gostei particularmente do seu comentário, Dr. Luís Fraga.
De facto, também eu nunca senti desejos de vingança por quem quer que fosse. Penso mesmo que esta característica faz parte integrante das mentes saudáveis, primárias, por vezes, mas que se "desnudam" perante o outro. Que não ruminam e não acumulam ódios, pois optam pela transparência de processos.Pela frontalidade.
A frase "acho que o tempo, ao contrário de me aumentar o rancor, o desagrado, o desgosto, os vai atenuando até ganharem uma dimensão irrisória", está bastante feliz e é reveladora de uma mente que sabe que esta vida é apenas uma breve passagem e que, como tal, tem de ser vivida com intensidade, com verdade, sem os tais "macabros silêncios".
Parabéns! Fez-me pensar e portanto...crescer!