Queria hoje falar-vos de uma experimentação psicológica singular, a qual provou até que inimagináveis limites de labilidade e de fraqueza pode o bicho-homem chegar, quando se vê confrontado com tudo o que possa simbolizar ou representar a Autoridade. Em que consistiu essa prova singular? Primeiro arranjou-se um grupo de cidadãos de ambos os sexos, com aquela credibilidade que é fornecida por um registo criminal limpo, um emprego estável, uma família “funcional” (mantenhamo-nos fiel à terminologia “técnica”…) e um registo de tributação identificador da classe média. Convenceram depois estes estimáveis exemplares da espécie humana de que iriam colaborar numa prova de transcendente interesse científico. Essa prova consistiria em premir um botão que comandava um conjunto de descargas eléctricas, progressivamente mais fortes, às quais estaria sujeita uma cobaia, também ela humana e sem abominações reconhecidas. Os “electricistas” foram esclarecidos previamente sobre o grau máximo da voltagem a que resistiria o paciente, para além da qual a sua vida entraria em risco. Mais: foi-lhes dito que uma só descarga de potência muito elevada, devidamente assinalada, de resto, no tabuleiro do disparo, seria inexoravelmente fatal. Depois meteram-lhes nas mãos o instrumento de tortura e pediram-lhes (ou ordenaram-lhes?) que obedecessem às instruções de uma voz-off oculta, nos devidos termos em que esse Grande Pai os instruísse. Ninguém, antes da prova se iniciar, questionou a legitimidade dela. Depois, todos cumpriram sem a menor hesitação as voltagens mais baixas. Continuaram a executar as descargas de risco, mas agora chamando a atenção para a possibilidade de colapso do paciente. Irei silenciar piedosamente a percentagem dos que, embora sob protestos e advertências puramente verbais, atingiram a bestialidade da voltagem fatal. Mas poderei assegurar que foram raros, muito raros, os que se negaram a assassinar o semelhante, reagindo com honra e dignidade à intimação de uma voz imperativa, autoritária, sonoramente coactiva. Claro que a aludida experimentação era um “faz-de-contas”. Mas as vozes dos tiranos que mataram por procuração ao longo da História não foram um jogo inofensivo ou uma ilusão. Falam por eles a memória de todos os torcionários e o testemunho de todos os morticínios.
25 de junho de 2008
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1 comentário:
Em cada Homem há um tirano anichado algures. A vaidade de mandar desperta-o; a ânsia de reconhecimento social activa-o; a insegurança no próprio valor, dá-lhe força; a impunidade solta-o completamente. Manter inerte esse tirano é um exercício individual que passa pela consciência colectiva e do colectivo.
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