12 de junho de 2008

BICHEZAS PEREGRINAS

Era um homem que se tinha dado à tarefa de coleccionar ideias. Mas cedo concluiu que para isso seria necessário abandonar os muros da casa onde vivia. Dentro dela colhera a ideia de um pequeno mundo, por onde passeava um gato siamês, um cão S. Bernardo e uma fiada de formigas, quando se esquecia dos restos do almoço na banca da cozinha. Passou então a percorrer a pé a sua cidade. Dentro dela colheu a ideia de uma pequena comunidade, por onde passeavam ao fim da tarde, junto ao rio, vários pares de namorados, muito enlaçados e a escorrerem ternura, dois varredores de lixo e um polícia. Entendeu então que deveria percorrer o país vizinho de automóvel. Dentro dele foi vendo passar praças de touros, lembranças do Quixote, fiadas de gente atrás de andores, em Semanas Santas roxas de crença, e Plazas Mayores atulhadas de gente e de calor. Colheu ali a ideia da alteridade próxima, ou seja, de algo de muito idêntico à sua cidade, mas tão proximamente idêntico que acabava por ser muito outro. Decidiu então correr o resto do mundo, mas reconheceu que só o poderia fazer de avião, sendo certo que não lhe sobejava o dinheiro para pagar tão distantes viagens. Voltou para casa, desgostoso. Recolheu-se à sua biblioteca e começou a ler. Leu muitas coisas: sobre os atavismos das formigas, os hábitos de higiene dos gatos siameses, as fidelidades pachorrentas dos cães S. Bernardo; leu depois romances românticos, textos sobre ecologia e regulamentos de polícia; nos meses seguintes releu o livro do Ingenioso Hidalgo e o poema de García Lorca “ A las cinco de la tarde/ Ay qué terribles cinco de la tarde!/ Eran las cinco en todos los relojes! / Eran las cinco en sombra de la tarde! ” ; nos anos que se sucederam aprendeu outras línguas ... e continuou a ler. Reconheceu, enfim, que podia coleccionar ideias sem sair de casa. Mas também concluiu, logo depois, que só num qualquer país concreto, à beira de um concreto rio é que os seres humanos se reconhecem como tais, sobretudo por fins de tardes namoradas, cheias de sol, quando é possível fazer correr, como na Bíblia, o leite e o mel da nossa promissão.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Entre a escrita mais real e a própria realidade vai um imenso vale onde podem habitar outras estranhas realidades nunca imaginadas, por isso, «a experiência é a madre de todas as coisas».
Um grande abraço